A partir de 2002, quando o Professor Alain Cribier executou o primeiro tratamento de percutâneo da estenose valvar aórtica (TAVI) (1), os procedimentos transcateteres começaram a se diversificar provocando um rápido crescimento e desenvolvimento da cardiologia intervencionista.
Em meados de 2007, quando foi disponibilizado comercialmente o primeiro equipamento de ecocardiografia tridimensional (2), uma nova era começou em relação ao tratamento das doenças estruturais do coração. Nas últimas duas décadas, portanto, os ecocardiografistas passaram a ter papel de extrema importância no apoio a diversas técnicas de tratamento percutâneo. Para citar apenas algumas, além do TAVI e das cardiopatias congênitas, o tratamento percutâneo borda-a-borda da insuficiência mitral (3) , a oclusão do apêndice atrial (3), o valve-in-valve (mitral e aórtico) (3), a oclusão de leaks periprotéticos (3) e, brevemente, no Brasil, o tratamento percutâneo borda-a-borda da insuficiência tricúspide além de inúmeras técnicas de trocas valvares por via percutânea das valvas tricúspide e mitral ainda em desenvolvimento mas já executados em alguns países. Todos estes procedimentos exigem a participação do ecocardiograma em sala e há um número cada vez maior de ecocardiografistas interessados e sendo treinados para o auxílio aos intervencionistas.
Um ponto importante a ser comentado é a falta de adequação de grande parte das salas de hemodinâmica do nosso país para o exercício seguro da cardiologia intervencionista. Os procedimentos percutâneos requerem a presença de hemodinamicistas, anestesistas, ecocardiografistas, às vezes, de cirurgiões cardíacos e vasculares, de técnicos de radiologia, enfermeiros e de técnicos especialistas responsáveis pela preparação dos dispositivos a ser implantados. Muitas destas salas de hemodinâmica e salas híbridas são antigas, isto é, foram construídas numa época em que não existiam os procedimentos da atualidade e, portanto, sem espaço adequado para o conforto e a segurança de toda a equipe. Eventualmente, faltam protetores como, por exemplo, aventais de chumbo, protetores de tireoide e protetores oculares. Sequer há dosímetros para aferir a quantidade de radiação em sala e, muito menos, orientação para sua medição periódica.
Pouco tem sido comentado sobre os riscos a que são submetidos todos os profissionais e, especialmente, os ecocardiografistas no tocante a exposição radiológica.
Recentemente, entretanto, foram publicados alguns estudos que alertam sobre os riscos à exposição radiológica a que os ecocardiografistas têm sido submetidos e são estas publicações as referências principais desta newsletter (4,5,6).
Nas salas de hemodinâmica, o que se percebe é que alguns equipamentos de proteção, como folhas de acrílico e cortinas contendo chumbo, são mais frequentemente disponibilizados para os intervencionistas. Os ecocardiografistas são, por conseguinte, submetidos a maior exposição à radiação do que os outros operadores e as regiões do corpo mais atingidas são os braços, as mãos e os pés (4,6).
Os perigos da exposição à radiação nos laboratórios de hemodinâmica e nas salas híbridas têm sido melhor documentados e relacionados ao aumento da incidência de algumas enfermidades, dentre elas, câncer, alterações da tireoide, catarata, hipertensão, hiperlipidemia, disfunção endotelial, envelhecimento vascular e aterosclerose precoces6.
É importante salientar que, grande parte dos ecocardiografistas intervencionistas está em treinamento e muitos são ainda jovens. Muitas das mulheres estão no período fértil e, algumas, podem até estar grávidas.
As evidências atuais sugerem que não há um nível seguro de exposição à radiação e, mesmo doses baixas, podem causar câncer e que os riscos geralmente são proporcionais à dose.
Em 2007, a Comissão Internacional de Proteção Radiológica (ICRP) recomendou as doses máximas de exposição à radiação dependendo da região do corpo atingida e de algumas situações: 20 miliSieverts (mSv), em média, por ano durante 5 anos e 50 mSV num único ano. Uma dose equivalente a 500 mSv por ano para a pele, mãos e pés e, apenas, 1 mSv, durante a gestação, principalmente no período da embriogênese fetal (4,6). Para reduzir o risco do desenvolvimento de catarata, mais recentemente, em 2011, o ICRP reduziu a dose limite para 20 mSv ao ano, em média, durante 5 anos, sem que seja ultrapassado o limite de 50 mSv durante 1 ano enfatizando a importância da proteção ocular durante os procedimentos de cardiologia estrutural (6).
A distribuição da exposição da radiação na superfície do corpo do ecocardiografista intervencionista ainda não está totalmente esclarecida mas evidências indicam que esta exposição depende da posição do equipamento de ecocardiografia na sala de hemodinâmica, do tipo e do tempo do procedimento realizado e do ângulo do arco do Rx (4,5,6).
Em relação ao tipo do procedimento os níveis de exposição radiológica variam significativamente. Estudos como os de Kataoka et al. e McNamara (4,5), descrevem, por exemplo:
Procedimentos de oclusão do apêndice atrial esquerdo (OAAE) frequentemente utilizam angulações de fluoroscopia que resultam em doses mais altas de radiação devido à necessidade de projeções oblíqua anterior direita (RAO) com inclinação caudal (3Xinterv).
Procedimentos como o reparo borda-a-borda mitral (TEER) também apresentam exposição elevada, com doses mais concentradas em áreas como o pescoço e cintura do que no tórax. Ainda com tempos de fluoroscopia maiores (11,7Xinterv).
Procedimentos como TAVI apresentam maior exposição à radiação na cintura direita e na parte inferior do corpo. Isso ocorre porque o uso da projeção RAO é recomendado durante o procedimento. ETE 3X > ETT.
Procedimentos da valva tricúspide usam as visualizações RAO e CRA para visualizar a entrada/saída do ventrículo direito, potencialmente expondo o profissional a uma dose de radiação mais alta.
Figura 1
Figura 1: Ilustração de posições relativas do ecocardiografista intervencionista (EI), do hemodinamicista (Hd) e do arco radiológico em diferentes configurações no laboratório de cateterismo. (A) o arco está localizado no lado esquerdo do paciente com o EI na cabeça do paciente. (B) o arco está à direita e o EI em ângulo oblíquo e à esquerda da cabeça do paciente. (C) o arco está posicionado atrás da cabeça do paciente e o EI à esquerda do paciente. Pb – barreiras de proteção de chumbo para o EI e o Hd. Seta vermelha – posição do arco radiológico indicando a direção do feixe de radiação.
Algumas medidas são recomendadas para minimizar os efeitos da exposição radiológica ao ecocardiografista intervencionista, dependendo do tipo de procedimento, de sua duração e da angulação do arco radiológico.
1. Parede de Chumbo: A sala deve possuir paredes reforçadas com chumbo para evitar que a radiação escape para outras áreas do hospital.
2. Barreira Móvel de Chumbo: Barreira de proteção móvel feita de vidro com chumbo, próxima ao ecocardiografista usada para bloquear a radiação direta enquanto ele realiza o procedimento.
3. Avental de Chumbo: O ecocardiografista deve usar um avental de chumbo, que cubra seu corpo da área do pescoço até os joelhos, minimizando a exposição à radiação.
4. Protetor de Tireoide: Protetor de tireoide em volta do pescoço do profissional para ajudar a proteger essa glândula sensível da exposição à radiação.
5. Óculos de Proteção com Lente de Chumbo: O ecocardiografista também deve usar óculos de proteção com lentes que contêm chumbo para proteger os olhos.
6. Monitor de Radiação: Uso de um monitor de radiação preso ao avental, para monitorar a dose de radiação acumulada durante os procedimentos , (6).
Em resumo, é necessária atenção aos seguintes pontos:
1) O ecocardiografista intervencionista está exposto aos riscos da radiação, por vezes, mais do que os outros operadores;
2) Os riscos da radiação estão relacionados ao tipo e ao tempo do procedimento, à posição do arco radiológico e à posição do equipamento de ecocardiografia;
3) Informação e educação continuadas são de fundamental importância para a segurança de toda a equipe (6).
Concluindo, os ecocardiografistas intervencionistas correm o risco de exposição a doses mais elevadas de radiação durante os procedimentos de oclusão do AAE sobretudo na projeção oblíqua anterior direita com inclinação caudal mais acentuada. Os estudos sugerem que o investimento na educação e na utilização de blindagem adequada para maximizar a proteção radiológica, especialmente para médicas em idade fértil, ajudariam a mitigar os riscos ocupacionais para os ecocardiografistas intervencionistas. Além disso, os operadores de cateteres devem estar atentos e realizar os procedimentos com tempos de fluoroscopia mais curtos e doses de radiação mais baixas. (4)
Figura 2
Figura 2: Exemplos de posições do ecocardiografista intervencionista (EI) em diferentes configurações no laboratório de cateterismo. (A) o arco radiológico está posicionado atrás da cabeça do paciente e o ecocardiografista à esquerda e atrás do paciente. (B) o arco está à direita e o ecocardiografista em ângulo oblíquo e à esquerda do paciente, posição com maior risco de exposição à radiação.
Nota: O termo ecocardiografista intervencionista foi mencionado nesta publicação para manter a denominação original utilizada nos artigos de referência. Esta terminologia não deve ser institucionalizada como uma subespecialidade visto que ainda não existe oficialmente no Brasil.
Referências
1. Cribier A, Eltchaninoff H, Bash A, et al. Percutaneous transcatheter implantation of an aortic valve prosthesis for calcific aortic stenosis: first human case description. Circulation.2002;106:3006-3008.
doi:10.1161/01.cir.0000047200.36165.b8
2. Hung J, Lang R, Flachskampf F, Sherman SK, McCulloch ML, Adams CB, et al. 3D Echocardiography: A Review of the Current Status and Future Directions. J Am Soc Echocardiogr. 2007;20: 213-33.
3. Agricola E, Meucci F, Ancona F, Sanz AP, Zamorano JL. Echocardiographic guidance in transcatheter structural cardiac interventions. EuroIntervention 2022;17:1205-1226.
4. Kataoka et al. Body surface radiation exposure in interventional echocardiographers during structural heart. Disease procedures. JACC: ASIA, vol.3.No.2.2023. April 2023:301-309. doi:10.1016/j.jacasi.2022.12.008.
5. Kataoka et al. Body surface radiation exposure in interventional echocardiographers during left atrial appendage closure: Monte Carlo simulation. Brief Research Communications. Journal of the American Society of Echocardiography. Vol 37.No 4.
6. Garcia-Sayan et al. Radiation exposure to the interventional Echocardiographers and sonographers: a call to action. Journal of the American Society of Echocardiography. Vol 37.No 7.
Autor: Eugenio S. de Albuquerque
Colaboração: Renata Cassar e Jairo Pinheiro
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